sexta-feira, 17 de julho de 2020

Falando em BDSM raiz... A Cerimônia das Rosas

Esse texto está nos meus baús de memórias e projetos já há alguns anos. Mas, como “liturgia” parece ser um dos temas favoritas nas rodas de debate de BDSM, e que nunca sai de moda (talvez pela complexidade que permeia o termo liturgia), eu resolvi, finalmente, me render ao tema CERIMÔNIA DAS ROSAS”.

Quando comecei a pesquisar para escrever sobre esse rito, para além das minhas memórias (realizei essa cerimônia em 1996), qual foi a minha “nenhuma” surpresa ao ver que sites e blogs de fora e os daqui, são tão somente a cópia e cola de um mesmo texto. Aqui, pretendo trazer as minhas próprias reflexões sobre a cerimônia, que considero necessárias ao BDSM como um todo, e também uma “descrição” mais ou menos padronizada sobre a ritualística que acompanha esse momento.

A cerimônia das Rosas é um ritual puramente litúrgico dentro do BDSM. Bastante em desuso atualmente, e eu desconfio que seja um reflexo da modernidade líquida, em que os relacionamentos, dentro e fora do BDSM, não duram mais do que um orgasmo (às vezes, nenhum). Em linhas gerais, corresponde ao “casamento” no BDSM, que difere do casamento baunilha, em um aspecto principal: essa cerimônia é privada, geralmente conta apenas com o (a) Dominador (a) e a (o) submissa (o). Adaptações muito discretas, envolvem a presença de uns poucos (pouquíssimos, não mais que quatro) convidados, que geralmente são membros “importantes” da comunidade BDSM.

Por “importante”, entenda-se: Pessoas de reputação positiva, geralmente experientes (embora essa não seja uma condição sine qua non para uma reputação positiva), mestres, mentores... Obviamente que, no fim das contas, quem vai participar de um passo significativo na vida do “casal”, é aquela pessoa por ambos considerada (primeira nota mental dessa Domme que vos fala: “se relacionem com pessoas de reputação positiva, sempre”).

Se vamos falar sobre cerimônia das rosas, vamos falar, obrigatoriamente, sobre liturgia. E o que é essa tal liturgia, indispensável a uns, dispensável a outros, razão de deboche para muitos, confusão para tantos?

“Abre parênteses”.

Quando a gente abre o dicionário, dá de cara com essa definição: li·tur·gi·a, do grego leitourgía. Substantivo Feminino: 1 HIST Na Grécia antiga, serviço cívico ou religioso prestado pelos cidadãos mais abastados. 2 REL O conjunto dos elementos e práticas que constituem o culto religioso de qualquer instituição. 3 REL Conjunto de palavras e/ou gestos usados na realização de ofícios e sacramentos; rito. 4 REL Ramo das ciências eclesiásticas cujo objeto de estudo se concentra nas origens, no desenvolvimento e nas regras canônicas do culto católico. É preciso lembrar que, se você for procurar em qualquer fonte “gringa” o tema: LITURGIA E BDSM, não vai encontrar. Esse é um conceito tupiniquim, criado e patenteado por aqui, e que atualmente tem sido uma das maiores fontes de dissenso no BDSM.



O que nós chamamos de liturgia é tão somente o conjunto de ritos e protocolos de comportamento inerentes à cena BDSM. Querer nivelar por alto os praticantes de BDSM que seguem de forma mais “rígida” esses códigos, e desmerecer àqueles que não os incorporaram nas suas relações, é tão esdrúxulo quanto dizer que uma pessoa que se denomina “fetichista” tenha menos importância do que aqueles que se identificam como BDSMers. No entanto, a liturgia, a meu ver, ultrapassa esse conjunto de ritos. Para aqueles que entendem o seu conceito, e não querem apenas resumi-la ao hábito de se referir a um TOP como “caro nobre” ou a um bottom como “menino/menina” (segunda nota mental: essas formas de tratamento, na maioria das vezes são bastante caricatas. Especialmente se considerarmos alguns TOPS que não têm um pingo de confiabilidade, e de bottoms já “barbados” o suficiente pra ostentar a alcunha de “menino”), a liturgia é algo meio etéreo. Ela simplesmente “É”, e qualquer pessoa de bom senso consegue “sentir” a presença dessa “entidade”, e imediatamente a difere desse conjunto de bobagens que costuma ter o seu nome.

Terminada a minha dissertação muitíssimo an passant sobre liturgia, e, se chegamos aqui ao consenso que ela engloba um conjunto de ritos, vamos voltar ao tema dessa postagem. A cerimônia das rosas, para mim, representa mais do que um ritual. Eu a vejo como uma passagem significativa para outro nível, um upgrade na relação. Fortemente desaconselhada àquelas pessoas que preferem relacionamentos fugazes, efêmeros, a cerimônia carrega em si a característica de celebração de algo duradouro, estável, mais permanente do que o “que seja infinito enquanto dure”. É algo carregado de simbolismos, e cada um dos seus elementos pode ser interpretado como fragmentos de tudo que tem sido construído até aqui e do que se pretende continuar a construir.

A cerimônia geralmente dura uma noite e a manhã do dia seguinte, que é o momento da renovação dos votos proferidos na noite anterior. Daqui pra frente, usarei os termos “Dominadora” e “submisso”, pra dar um toque pessoal ao relato. A minha cerimônia das rosas teve um “celebrante”, portanto, a descreverei dessa forma, porém, a presença dessa pessoa e dos poucos convidados, como eu disse lá no terceiro parágrafo, é facultativa.

Elementos

A dominadora, segurando uma rosa vermelha em floração, quase totalmente aberta. A cor vermelha simboliza a paixão, o domínio, a proteção e floração incompleta significa que o dominante está maduro o suficiente para cuidar do submisso, porém, esse processo é contínuo e, daqui pra frente, a dois.


O submisso, de coleira e com seu botão de rosa branca. A cor branca simboliza a submissão, a entrega, a cessão de poder, o desejo de ser conduzido por aquela a quem aceitou como dominante. O botão, ainda fechado ou em mínima floração, simboliza, assim como para a dominadora, um processo contínuo de entrega e amadurecimento.




Eles se posicionam de frente um para o outro e a Dominadora tira a coleira do submisso, passando-a pela chama das velas, que podem estar na mão do celebrante ou sobre uma superfície, no caso da cerimônia privada. A devolução da coleira para o pescoço do submisso indica o compromisso da Dominadora de proteção.


Nesse momento, o submisso pica o dedo e deixa cair duas gotas de sangue sobre a sua rosa branca (originalmente essa picada era feita com um espinho da rosa, no entanto, por questões de segurança, evitem a transmissão de doenças graves, como a esporotricose: usem uma agulha estéril para esse procedimento). A dominadora também pica o seu dedo e deixa as gotas do seu sangue caírem por cima do sangue do submisso, reforçando que ela aceita a responsabilidade de protegê-lo “a qualquer custo”. Eles pressionam os dedos um contra o outro, como um “pacto de sangue”.


Nesse momento, o cerimonialista, ou pra quem prefere uma pegada mais baunilha, os “padrinhos” (testemunhas), pegam um pedaço de corrente de metal, passam pela chama e envolvem os punhos do casal (terceira nota mental: ESPEREM ESFRIAR). O significado da corrente nessa cerimônia vai além do óbvio, que é representar a união do casal. Ela representa todos os elos que foram ligados, um a um, durante o processo de amadurecimento e construção que os trouxe até aqui. A chama é o símbolo de uma união indelével, forjada no fogo. 




As rosas são trocadas (como se trocam as alianças) e o que se segue é a remoção da corrente, que é guardada e entregue ao casal. As rosas são depositadas em um vaso único e também guardadas e o casal se retira para o quarto, masmorra, etc. Esse é o segundo momento bem diferente de um “casamento”. Aqui, não tem festa nem confraternização com os amigos. O casal vai pro seu quarto, e o que acontece “em Vegas, fica em Vegas”!

Pela manhã, as rosas são despetaladas e guardadas juntas... E o casal mantem essas pétalas até quando a relação durar... A mistura dessas pétalas indica que, daqui em diante, são duas vidas imiscuídas, que somam uma à outra. Por fim, a corrente, que foi entregue no momento da cerimônia, geralmente é passada para a pessoa que o casal achar que é “digna” do presente. Essa pessoa poderá usar na sua própria cerimônia, se assim desejar.

Espero que esse texto seja útil pra desmistificar essas falhas de interpretação relativas à uma cerimônia puramente litúrgica e que, nesses blogs de cópia e cola, é descrita como “até que a morte os separe”, “o casal vai levar pro tumulo”, “à meia noite levarei sua alma” e demais delírios que envolvem o dito BDSM litúrgico. É um rito lindo, uma cerimônia especial, mas, em momento algum, as pessoas envolvidas nela passam ao estado do quinto elemento e deixam de ser PESSOAS. Pessoas que falham, que desistem, que são imperfeitas. Essa também é a magia do BDSM. Beleza e caos.