domingo, 20 de dezembro de 2020

Olha a chuuuva!!! É mentiraaaa!!! (ou, o que você precisa saber sobre chuvas de prata, dourada, vermelha, marrom e romana)

Lá nos idos de 2015 eu fiz um post sobre Segurança e BDSM (quem quiser ler, é só clicar aqui (https://perfumedemorgana.blogspot.com/2015/10/seguranca-x-bdsm-seguranca-e-um-dos.html?zx=e18e1c51b0f5f382). Nesse post, falando pros iniciantes, abordei de forma bem superficial, os aspectos de segurança nas práticas com excreções. No entanto, como pesquisadora e profissional da área de saúde, creio que o momento crítico em termos de saúde global pelo qual estamos passando, merece um "review" e conscientização com as práticas que envolvem artigos críticos potencialmente transmissores de doenças.

Não é simples nem fácil falar sobre fetiches tão polêmicos quanto as chuvas. Pra maioria de nós, as  chuvas prateada e dourada certamente denotam humilhação, porém, uma vez expostas em vários filmes e novelas, de certa forma, acabaram sendo "naturalizadas". No entanto, falar sobre chuva marrom (scat) e a chuva romana (puke) é algo que remete imediatamente a asco, nojo e repulsa. Num grau de repulsa um pouco mais "discreto", mas não livre de julgamentos ou, no mínimo, bastante estranhamento, temos a chuva de rubi, relacionada à ingestão de sangue menstrual, muito mais ligada ao fetiche de humilhar do que de ser humilhado, ao contrário das chuvas anteriores, em especial a marrom. Talvez, por todas as questões que permeiam esses fetiches, seja muito raro um bom material sobre esse tipo de prática. É difícil encontrar textos que abordem os aspectos psicológicos, o fetiche imensurável pela humilhação e degradação que levam alguém a se excitar apenas pela expectativa de ser cuspido ou ingerir urina, fezes e vômito. 

O objetivo desse post não é falar sobre o que tá por trás do fetiche, e sim, abordar a questão da segurança na execução dessas práticas, uma vez que (espero eu) todos nós concordamos que nosso objetivo no BDSM é satisfação erótica e não adoecer. Então, eu vou tentar esmiuçar aqui cada uma das chuvas e abordar os potenciais riscos relacionados a cada uma delas.

CHUVA DE PRATA



"Chuva de prata que cai sem parar.."

É bem verdade que a chuva de prata não diz respeito exclusivamente à prática de "spitting" (cuspir). A chuva prateada envolve a ingestão dos produtos do gozo feminino e masculino, ou ainda ao ato de ejacular sobre o corpo do (a) parceiro (a).  Se refere também, ao ato de forçar alguém a lamber suor (Curiosidade: o fetiche por suor, fora do contexto de dominação e submissão, chama-se SALIROFILIA, do latim, afinidade por fluidos orgânicos salgados).

Cuspir ou ordenar que alguém lamba seu suor é algo diretamente ligado à dominação e ao fetiche por humilhação, no entanto, a ejaculação no corpo ou na boca, apesar de humilhante para alguns, é associado, por muitas pessoas, à recompensas. 

Existem pouquíssimos estudos que relacionam o suor à transmissão de doenças. Em 2003, o CDC (Center for Diseases Control - EUA) lançou um guia para controle de infecção na prática odontológica e considerou que todos os fluídos corporais, EXCETO o suor, seriam potenciais transmissores de hepatite B. No entanto, em 2007, um estudo publicado no British Journal of Sports Medicine, em 2007, descreveu a presença de DNA do vírus da Hepatite B no suor de atletas olímpicos, sugerindo que sua transmissão poderia ser veiculada pelo suor. 

Com a saliva, não temos sombra de dúvida: Ela é potencial transmissor de diversas doenças, incluindo a temida COVID-19, transmitida pelo contato com suas gotículas.  Portanto, NÃO EXISTE nível seguro pra prática de spitting envolvendo parceiros ocasionais,  em épocas de coronavírus. Além da COVID-19, a saliva pode carrear diversos microrganismos, em sua maioria, vírus, porém aqui há que ser feita uma distinção entre as doenças transmitidas pela saliva, daquelas transmitidas pelo beijo.

Diversos vírus albergados na boca, garganta e nariz podem ser transmitidos pela dispersão de gotículas de saliva e é aqui que mora o perigo. No momento que uma pessoa infectada cospe no rosto de alguém, essa saliva vai se dispersar pela boca, nariz e eventualmente na mucosa ocular. Isso oferece um alto risco de infecção por outros vírus da família do coronavírus, alguns rinovírus e os vírus da gripe, ou ainda bactérias que podem causar doenças graves, como tuberculose. Já com relação à transmissão pelo contato direto com mucosa oral, durante o beijo, temos uma infinidade de vírus que provocam herpes, hepatites, mononucleose, e a conhecidíssima candidíase, doença fúngica também transmitida pelo sexo oral.

Por falar em sexo oral, são diversas as infecções transmitidas pelo contato oral-genital. No entanto,  não há relatos de transmissão de doenças pelo contato da pele íntegra com esperma ou líquidos vaginais. Então, a chuva prateada que envolve a ejaculação sobre o corpo do bottom tá mais do que liberada!


CHUVA DOURADA




Creio que, de todas as chuvas, a famosa "Golden shower" popularizada por um certo governante, é a mais comumente difundida em filmes, mesmo os que não são considerados pornô propriamente ditos. Cenas de chuva dourada já foram vistas em "Bruna Surfistinha", na série "Sex and the city" e na série da Netflix de 2019, essa sim, com a temática fetichista, "Amizade Dolorida".

A chuva dourada envolve o ato de urinar sobre alguém como prática de humilhação, ou ainda, a ingestão de urina por alguém com o fetiche em ser degradado. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a urina só é estéril na bexiga, ou seja, pode ser contaminada por agentes infecciosos presentes no trato urogenital. Isso significa que, caso o Top esteja doente, o risco de transmissão é alto, e não pode ser ignorado. A transmissão de citomegalovírus pela urina já foi relatada em diversos guidelines do CDC, e esse vírus está relacionada com infecções latentes que, assim como os vírus da herpes, não têm cura. O vírus da Zika também é comprovadamente transmitido pela urina.

No entanto, esse risco está diretamente ligado o contato da urina com fissuras e lesões na pele, e principalmente, com mucosas, como os olhos e a boca, que é um participante contumaz do fetiche, uma vez que na maioria dos casos, o bottom ingere a urina. O contato com a pele íntegra não oferece riscos de transmissão de qualquer doença. 

Além disso, é importante lembrar que a urina, embora composta primariamente de água, também tem em sua composição excretas altamente tóxicos, derivados de amônia, como ureia. Esses compostos foram filtrados da sua corrente sanguínea, processados nos rins e excretados porque seu corpo precisa se livrar deles. Sendo assim, não existe muito sentido do ponto de vista da saúde, em reabsorver esses excretas, porque isso vai forçar seus rins a processá-los novamente em concentrações ainda maiores. 

Portanto, a condição sine qua non para praticar chuva dourada com segurança é a ingestão generosa de ÁGUA! O top precisa ter esse cuidado, de jamais esquecer da sua preparação de cena, que inclui hidratar-se MUITO.


CHUVA VERMELHA OU CHUVA DE RUBI




A chuva de rubi ou vermelha é a prática que envolve o sexo oral durante a menstruação, e consequentemente, a ingestão do sangue menstrual. Assim como lamber suor pode ser considerada chuva prateada no contexto da humilhação, ou um fetiche dissociado de BDSM que recebe o nome de salirofilia, a chuva de rubi fora do BDSM é chamada de MENOFILIA.

Com relação aos riscos da prática, é preciso lembrar que o sangue menstrual carreia agentes infecciosos como HIV e vírus da Hepatite B, bem como bactérias causadoras de sífilis (Treponema pallidum). O contato do sangue menstrual com a pele íntegra (por exemplo, se a top quiser fazer o bottom de tapete, estando nua) não oferece risco, no entanto, em caso de lesões na pele ou contato com mucosas, não existem níveis seguros para a prática. 

Por fim, e não menos importante, não se deve esquecer que a ingestão do sangue DURANTE o sexo oral, oferece os mesmos riscos de contágio de qualquer IST (infecção sexualmente transmissível) transmitida pelo contato oral-genital.


CHUVA ROMANA (PUKE)




Assim como as demais chuvas, o fetiche por vômito no contexto de dominação e submissão, está diretamente ligado ao fetiche por humilhação e degradação erótica. Quando fora do contexto de BDSM, a excitação pode ocorrer apenas pela visão de alguém vomitando, ou mesmo durante a prática de "garganta profunda" durante o sexo oral e é chamada de EMETOFILIA. O nome "chuva romana" vem do hábito dos antigos romanos de vomitar durante as festas para abrir espaço para mais comida, como parte de um ciclo de compulsão e purgação.

Não há relatos de transmissão de doenças por meio da ingestão de vômito, porém, não é uma prática isenta de riscos. Episódios repetidos de vômito podem causar desde desidratação e desgaste dos dentes como quadros graves, como a Síndrome de Barret, que provoca uma mudança do epitélio do esôfago que pode evoluir para câncer. Além disso, há que se observar o risco de broncoaspiração do vômito, especialmente se aliado à prática de bondage e shibari, que podem levar o bottom ao sufocamento.



CHUVA MARROM (SCAT)



Aqui vamos nós para a mais polêmica de todas as chuvas. Não é pra menos, porque a nossa reação primitiva à presença de fezes é de repulsa. A coprofilia  é uma parafilia em que as pessoas se excitam ao assistir alguém defecar em outra pessoa, defecar em outra pessoa ou ainda receber as fezes sobre seu corpo ou boca. A ingestão de fezes, especificamente, é o que conhecemos como "scat" e também pode ser chamada de coprofagia.

Como falei lá no início desse texto, não pretendo abordar os aspectos psicológicos dos fetiches, embora esteja claro para mim que todos eles, e especialmente a chuva marrom, sejam ligados à humilhação extrema. Antes, meu objetivo aqui é falar das implicações fisiológicas e das consequências na saúde física dos praticantes desse tipo de prática.

Não é segredo pra nenhum de nós que existem incontáveis doenças que podem ser transmitidas por água contaminada pelas fezes. Basta lembrar dos conceitos de higiene aprendidos na escola quando éramos crianças: "Lave bem as mãos antes das refeições e não consuma alimentos crus", além  do clássico "frutas e verduras devem ser higienizadas antes de consumidas". Isso tem uma razão bem simples: a transmissão fecal-oral de diversos agentes infecciosos.

Agora, pensa comigo. Se tem risco na água contaminada com as fezes, qual o tamanho do risco ao INGERIR fezes?

O risco é enorme, meus amigos. A gente pode começar a lista com inúmeras verminoses, algumas bastante graves como esquistossomose, até hepatite A, cólera e diarreias infecciosas provocadas por bactérias como Samonella e vírus como Rotavírus. E acredite, a maioria dessas doenças é assintomática ou tem sintomas muito genéricos que a maioria das pessoas sequer pensaria neles como um quadro infeccioso.

"Então, Morgana, eu tenho esse fetiche e queria saber se dá pra praticar de forma segura". 

Dá pra minimizar o risco, parceiro! Como? Mais uma vez contando com a preparação de cena do Top, que vai precisar de um tempo pra colocar as coisas em ordem. Em primeiríssimo lugar, VACINA! Isso mesmo, vacina contra hepatite tem que estar em dia!!! Em segundo lugar, cuidar da saúde de forma geral. É recomendado estar vermifugado, e não se esqueça que a maioria desses medicamentos requer um ciclo de 14 dias pra fazer efeito. Então, se você tem esse fetiche, esteja precavido com relação a isso. 

Jamais descuide da alimentação. A higiene com seus alimentos vai se refletir na sua saúde e na saúde do seu partner. Entenda que a realização de um fetiche é uma via de mão dupla. Além disso, muitas pessoas que praticam scat tem predileção por odores, consistência e quantidade de fezes, portanto, uma dieta equilibrada é importante pra prática ser ainda mais prazerosa.

Por fim, e não menos importante, eu gostaria de lembrar a todos que, nesses tempos pandêmicos, é FUNDAMENTAL acreditar na ciência. No caso da COVID-19, a ciência diz que o vírus permanece vivo nas amostras fecais, ou seja, pode ser transmitido pelas fezes, como publicado nesse artigo aqui:



É isso. Não foi fácil escrever esse artigo, mas espero que possa auxiliar a todos a praticarem com mais segurança e consequentemente, ter mais prazer.

Beijos da Domme Má.