domingo, 15 de setembro de 2019

Sobre SPACE, DROP e outros bichos


Depois de um longo e tenebroso inverno, resolvi voltar a escrever. Como não poderia deixar de ser, escolhi esse assunto que é muito comentado nos grupos e fóruns de BDSM, porém, muitas vezes com informações errôneas e desencontradas, que mais atrapalham que ajudam.

Frequentemente ouvimos falar em SubspaceSubdrop e Sub-burnout, sendo esse último o estado emocional menos comentado. No entanto, não são apenas os bottoms que sofrem essas alterações neuroquímicas, portanto, usarei daqui pra frente apenas os termos "SPACE", "DROP" e "BURNOUT", que se aplicam à Tops e Bottoms.

Eu costumo fazer uma analogia bem didática pra exemplificar o balanço entre space e drop, usando uma patologia bem conhecida da maioria das pessoas: o diabetes. Diabetes é um descontrole da quantidade de glicose no sangue, regulada basicamente por dois hormônios: insulina e glucagon. Quando a gente ingere muito açúcar, a insulina é "despejada" na corrente sanguínea pra diminuir a absorção de glicose, e o contrário, quando temos uma baixa oferta de glicose circulante, o glucagon quebra moléculas de carboidratos armazenados e libera mais glicose no sangue.

Você deve estar se perguntando o que diabetes tem a ver com BDSM. A questão é que, uma vez que o space, que é a parte "boa", a onda, o transe, é regulado por neurotransmissores e hormônios, é como se fosse um monte de "glicose" jogada na corrente sanguínea, então, seu corpo vai entender que, havendo excessos, ele deve disparar algum mecanismo que balanceie e equilibre isso. E aí vem o drop...

De forma a deixar esse bate papo mais didático e menos complicado, vou tentar descrever esses estados emocionais/psicológicos/neuroquímicos em tópicos.

SPACE

A primeira coisa que se deve dizer sobre space é que "NÃO É ERRADO NÃO ENTRAR EM SPACE". Vejo inúmeras pessoas se cobrando por nunca terem entrado em space, como se a play ou sessão não tivesse sido prazerosa o suficiente , ou como se entrar em space fosse muito mais uma questão de status social (eu sou um BDSMer melhor que os outros). Como no caso de uso de quaisquer substâncias que alterem a consciência e percepção, como álcool, drogas ou medicamentos, existem pessoas mais suscetíveis e outras mais resistentes, mas o fato de ser mais resistente não significa que você não esteja sofrendo esses efeitos.

E o que significa, de forma prática, o space? Esse estado nada mais é do que a liberação de endorfina e aumento dos níveis de adrenalina no sangue. A endorfina é um neuro-hormônio liberado em reposta à dor (endo=dentro, orfina=morfina) e ao controle da depressão, stress e ansiedade. Então, da mesma forma que você libera endorfina quando faz atividade física, quando quebra um braço ou rala os joelhos, esse hormônio é liberado quando você sofre um spanking, por exemplo. Quando nosso corpo libera endorfinas, ele libera outros hormônios que são responsáveis pelo aumento nos níveis de adrenalina (sugiro ler o outro post aqui, chamado as bases bioquímicas do amor). A adrenalina é o hormônio do medo, da fuga, que relaxa alguns músculos e contrai outros, aumenta a pressão arterial e prepara o corpo pra reações extremas.

Quando toda essa tempestade neuro-hormonal é disparada em resposta à dor, o que acontece é que se iniciam processos que vão culminar na expansão ou perda de consciência, transe e a sensação de estar fora do corpo. Algumas pessoas parecem estar embriagadas, drogadas ou ainda, têm "ataques de riso". Essas diferenças refletem as particularidades de como cada um reage à esses estímulos. Outras pessoas podem reagir ao space com comportamentos eufóricos, alegres, porém, conscientes. Porém, uma fase comum à todas as pessoas que entram em space é o "spin", descrito por alguns terapeutas sexuais como o estágio em que fazemos qualquer coisa, literalmente, pra manter a sensação de prazer e quebrar a inibição durante o sexo. O spin também pode ser definido como a sensação de orgasmo permanente, da qual fazemos de tudo pra não sair...

Submissos não masoquistas tendem a entrar em um outro tipo de space, relacionado com a necessidade de servir. É o momento que a submissão tá no auge, que o prazer é todo direcionado para o Top, e que a noção de alegria se resume ao serviço, à entrega, à condição de estar sendo moldado pelo prazer de quem comanda a cena. 

Independente da condição, se bottom ou Top, se submisso ou masoquista, o ápice do space é o momento em que tudo desaparece e ali permanecem apenas Top e bottom. Os sentidos são brutalmente apurados ou apenas desvanecem, gerando uma sensação de torpor. É por essa razão que o space é uma faca de dois gumes: apesar da imensa onda de prazer, o pensamento racional, a tomada de decisões e, especialmente, o reconhecimento de limites ficam prejudicados. É nesse momento que o Top deve diminuir o ritmo e gradualmente parar a cena, trazer o bottom devagarinho de volta a realidade e iniciar o aftercare.

Mas como o Top reconhece o space? A linguagem corporal geralmente dá a dica de que o space chegou. Produção excessiva de saliva ou boca seca, tremores, sudorese intensa ou queda brusca de temperatura, emissão de sons guturais ou dificuldade de articular as palavras. Algumas pessoas podem entrar em estados tão profundos de inconsciência que ficam incapazes de responder à perguntas simples, como "qual seu nome?" ou " está claro ou escuro?". A palavra de ordem nesse momento é "PARE", porque essa pessoa não tem mais limites físicos e é incapaz de pronunciar a palavra de segurança, por exemplo.

Você deve estar se perguntando como é que isso se aplica ao Top. Explico: o Top também sente dor, também faz esforço. Imagina bater em alguém por horas, a tensão da cena que faz com que os músculos se contraiam, a tempestade de adrenalina (não se esqueça que seu corpo não entende o ato de bater e apanhar como "naturais", apenas como ação e reação à um perigo iminente). Dessa forma, embora seja muito menos comum, Tops também podem entrar em space. 

Na verdade, o estereótipo do Top como alguém completamente forte e inatingível é bastante tóxico dentro do BDSM. Segue o mesmo princípio de "homem não chora". Tops são humanos, sentem cansaço, fadiga, tristeza e têm dias ruins. Não é porque estamos cuidado de outra pessoa que não precisamos de cuidados também. Nesses casos, é bom que tenhamos alguém com quem conversar, ou que utilizemos dos mesmos artifícios do aftercare com o bottom: Um chocolate (retarda a queda de endorfina), um livro, filmes, um bom banho... Coisas que dão prazer.

Reforço, com esses últimos parágrafos, a importância de nos relacionarmos com pessoas não apenas experientes, pois toda experiência parte da inexperiência, mas com pessoas que se preocupam em conhecer seu corpo, em primeiro lugar, antes de praticar BDSM. Além disso, e sobretudo, com a responsabilidade que é conduzir e ser conduzido, de forma a saber em que momento deve-se abrir mão do prazer em nome da segurança. 





Molécula de miosina carregando a endorfina para a porção parietal do cérebro que gera felicidade


Subtópico: A importância do AfterCare
Basicamente, como o próprio nome diz, aftercare são os cuidados "após". Tudo o que ocorre após uma sessão ou uma play aberta, que traga alguém de volta a realidade. O aftercare restabelece os papéis normais de Tops e bottoms após a prática, e, ao contrário do que muita gente acha, e por essa razão, recusa-se a praticar o aftercare, esse não é momento de botar no colo, dormir de conchinha e dar beijinho (a menos que seja prazeroso pra ambos, é claro!). Após o spanking, por exemplo, ou práticas mais invasivas como blood play, o after é composto primariamente de primeiros socorros "físicos". É o momento de realizar a limpeza dos cortes e lesões, oferecer pomadas ou analgésicos (verificar com o bottom antes da play quais os medicamentos ele pode usar), oferecer água e um doce, de preferência chocolate, caso o bottom não seja diabético (nesse caso, chocolate dietético para manter os níveis de endorfina se normalizando lentamente), contato físico, de preferência em alguma área que não tenha sido afetada pela cena, que pode ser um abraço ou simplesmente, sentar-se ao lado do bottom para observar suas reações e demonstrar seu interesse em que tudo corra bem com ele dali pra frente. Eu costumo dizer que muita coisa no BDSM é teoria, mas o aftercare é OBRIGATÓRIO. É o desfecho da prática, é o reforço dos laços afetivos e de confiança. E mesmo com praticantes ocasionais, com os quais não se tem uma relação, isso não pode ser negligenciado.



DROP

De forma bem objetiva, o drop é um estado de exaustão neuroquímica que se segue após a prática. Como eu disse lá no tópico do space, quando praticamos BDSM, sofremos uma tempestade de endorfinas e adrenalina, e é natural que terminada a prática, o corpo vá retornando aos níveis normais dessas substâncias. No entanto, devido à intensidade da cena, é comum a sensação angustiante provocada pela falta desses estímulos, que pode ser leve, moderada e acentuada, dependendo da pessoa, e pode culminar em estados depressivos provocados pelos baixos níveis de endorfina e dopamina, por exemplo. Existem alguns sinais clássicos de drop, que serão descritos abaixo e, por experiência própria, uma das formas de minimizar essa sensação é desligar-se lentamente da cena. Ao fim da prática, em vez de simplesmente desamarrar uma pessoa que está presa, ou simplesmente parar de bater, é importante que seja diminuído gradativamente o ritmo do spanking, ou no caso de bondage por  exemplo, que sejam tiradas as vendas, depois a mordaça, depois as algemas ou cordas, e em meio a toda essas ações, que haja conversa, elogios, que o Top agradeça ao bottom por ele ter confiado, por ter proporcionado um bom jogo, etc. Atitudes como essas ajudam a minimizar a sensação de abandono que pode acompanhar o drop.
NOTA PARA OS TOPS: JAMAIS deixem de agradecer aos bottoms, nem de demonstrar como eles foram importantes e proporcionaram prazer!!!!

Como identificar o drop?
O drop pode incluir sinais físicos prolongados e emocionais, e de maneira geral, esses são os mais comuns:

SINAIS FÍSICOS
  • Boca seca, sede excessiva, como se estivesse de ressaca;
  • Dores pelo corpo (provocadas não apenas pelo impacto ou pela contenção, mas pela contração muscular em momentos de tensão);
  • Câimbras;
  • Cansaço extremo, mais do que o normal;
  • Tonturas
  • Sudorese intensa, que pode ser suor frio ou não;
  • Tremores;
  • Sensação de "choque elétrico"

SINAIS EMOCIONAIS
  • Irritabilidade;
  • Tristeza;
  • Dificuldade de concentração;
  • Dificuldade para dormir ou excesso de sono;
  • Dificuldade para comer ou excesso de apetite;
  • Ansiedade persistente e sem controle;]
  • Sensação de abandono e solidão;
  • Culpa;
  • Medo;
  • Negação;
  • Dependência emocional
OBS: O drop pode se manifestar de 24 a 72h após a prática, portanto, é necessário o acompanhamento nesse período. É bom desconfiar também de estados de euforia constante, pois podem ser indicativos de mecanismos de negação.

Rolou o drop. E agora, como lidar com isso?
Os sintomas físicos do drop são infinitamente mais simples de serem sanados, desde que feito um aftercare correto. É importante acompanhar a evolução das dores, e, caso os medicamentos utilizados não estejam sendo suficientes, é necessário procurar ajuda médica, para verificar possíveis lesões não intencionais que não tenham sido identificadas. O cuidado com as marcas também é necessário, visto que a permanência delas pode induzir o bottom ao estado de culpa ou vergonha, porém, por outro lado, existem pessoas que gostam de observar suas marcas e isso traz a elas conforto e prazer. Quanto aos sintomas emocionais, obviamente, tudo que acontece dentro das nossas cabecinhas toma proporções muitas vezes desastrosas, que podem nos levar a um estado de depressão e vazio incontroláveis. Muitas vezes a sensação mais comum é a do abandono, provocada pela falta de estímulo e intensidade da prática ocorrida, o que é puramente fisiológico mas toma proporções irracionais. Nesse momento, o diálogo é fundamental, mas se fazer presente de alguma forma, é essencial. No caso de impossibilidade de encontros presenciais, é necessário que o Top telefone, envie mensagens, e nessas demonstre a todo tempo que o bottom foi incrível, que seja elevada sua autoestima para evitar sentimentos de culpa e de incapacidade. A carência e dependência nesse momento são muito, muito usuais, então paciência e carinho, são os antídotos. Não seja ríspido e não se ofenda com uma pessoa que "acha" que você está distante, porque pra ela isso não é simplesmente "achar". Ela tem certeza disso, mesmo que não seja verdade! Como eu digo, BDSM não é pra quem quer, e sim, pra quem aguenta. Se você acha que não tem condições e/ou disponibilidade para dar esse suporte emocional, não pratique! 

Conselho aos Tops: A cena vai muito mais além daquilo que você mostra numa festa ou em fotos. O que tá por trás e se segue após tudo isso é o que faz de você uma pessoa responsável.





É importante lembrar que o drop ocorre muito mais frequentemente em relacionamentos estabelecidos, seja um casal ou um play partner com quem você tenha laços. Isso acontece porque em plays casuais, os elementos afetividade e intimidade, que acontecem nos relacionamentos já estabelecidos, não têm o mesmo peso, pois são justamente essa intimidade e confiança que podem ser questionadas durante o drop. Não importa o quanto você confie em alguém, que isso não impede que sentimentos como descrença (é possível que eu seja tão sujo e pervertido a ponto de gostar disso?") venham à tona, e isso culmine no drop. Além disso, limites estabelecidos em relacionamentos de "compromisso", podem ser frequentemente testados e expandidos, o que não ocorre (ou não deveria ocorrer) numa play casual, que não tem tempo nem histórico emocional suficiente para criar um ambiente pra realização de "edge plays". 

Quando o drop se prolonga por longos períodos, e apesar de todos os cuidados pra que isso não ocorra terem sido tomados, quando a sensação de tristeza e depressão vêm acompanhadas até de impulsos suicidas motivados pela sensação de incapacidade, de ineficiência e de insatisfação, pode estar configurada uma síndrome psicológica desencadeada pelo stress contínuo, o burnout.  


BURNOUT

Essa nomenclatura não é algo inerente ao BDSM, mas à uma síndrome psicológica que se caracteriza pela apatia provocada pelo acúmulo de stress, atualmente muito ligada ao trabalho. De acordo com Freudenberger, psicólogo clínico que na década de 70 deu nome à síndrome, um indivíduo com burnout se comporta como estando frustrado ou com fadiga desencadeada pelo investimento em determinada causa, modo de vida ou relacionamento que não correspondeu às expectativas. As pessoas nessa condição, frequentemente deixam de investir nas relações afetivas, em virtude da exaustão causada pelo stress decorrente de se sentirem o tempo todo sob a pressão de agradar e da consequente sensação de que não são bons o suficiente, de serem os melhores partners, de estarem o tempo todo impecáveis para fotos e práticas abertas, entre outros fatores. O burnout é, ainda, mais comum em relacionamentos longos que misturam a vida baunilha, e em relações TPE, por exemplo. 

Esse estado psicológico se caracteriza pela falta de desejo de se submeter ou de dominar, e geralmente a letargia e apatia são gritantes. O esgotamento geralmente ocorre quando os recursos de criatividade foram extenuados, em que não existe mais excitação com o fetiche nem interesse em demonstrar e/ou falar disso com alguém. Nessa situação, deixa de investir nas relações afetivas e, aparentemente, torna-se incapaz de se envolver emocionalmente com o mesmo. A exaustão emocional dos que sofrem desse quadro é diretamente ligada a um quadro de intensa tensão emocional que leva ao esgotamento e apatia, e que pode se agravar até a despersonalização e desenvolvimento de sentimentos e atitudes negativas, como suicídio. Obviamente essa síndrome é um conjunto de fatores, e as práticas BDSM podem não ser o determinante, mas certamente são agravantes. De qualquer forma, por se tratar de um quadro permanente por longos períodos, requer assistência psicológica e/ou psiquiátrica, em virtude dos graves desdobramentos desse quadro. No entanto, reforço que, assim como durante todo o processo que envolve o BDSM, desde uma play avulsa até um relacionamento longo de dinâmica 24/7, a consensualidade, a responsabilidade física e, sobretudo, emocional, devem ser os pilares sobre os quais sejam construídas todas essas relações.




Até breve





Um comentário:

  1. Eu amei sub space, sub drop,lembrei de min numa época ,meus sentimentos eram um vulcão de sensacoes,espero q muitos Top tenham visto o texto tb,parabéns eu gostei muito.

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