Depois de um longo e tenebroso inverno, resolvi voltar a escrever. Como
não poderia deixar de ser, escolhi esse assunto que é muito comentado nos
grupos e fóruns de BDSM, porém, muitas vezes com informações errôneas e
desencontradas, que mais atrapalham que ajudam.
Frequentemente ouvimos falar em Subspace, Subdrop e Sub-burnout,
sendo esse último o estado emocional menos comentado. No entanto, não são
apenas os bottoms que sofrem essas alterações neuroquímicas, portanto, usarei
daqui pra frente apenas os termos "SPACE", "DROP" e
"BURNOUT", que se aplicam à Tops e Bottoms.
Eu costumo fazer uma analogia bem didática pra exemplificar o balanço
entre space e drop, usando uma patologia bem conhecida da maioria das pessoas:
o diabetes. Diabetes é um descontrole da quantidade de glicose no sangue,
regulada basicamente por dois hormônios: insulina e glucagon. Quando a gente
ingere muito açúcar, a insulina é "despejada" na corrente sanguínea
pra diminuir a absorção de glicose, e o contrário, quando temos uma baixa
oferta de glicose circulante, o glucagon quebra moléculas de carboidratos
armazenados e libera mais glicose no sangue.
Você deve estar se perguntando o que diabetes tem a ver com BDSM. A
questão é que, uma vez que o space, que é a parte "boa", a onda, o
transe, é regulado por neurotransmissores e hormônios, é como se fosse um monte
de "glicose" jogada na corrente sanguínea, então, seu corpo vai
entender que, havendo excessos, ele deve disparar algum mecanismo que balanceie
e equilibre isso. E aí vem o drop...
De forma a deixar esse bate papo mais didático e menos complicado, vou
tentar descrever esses estados emocionais/psicológicos/neuroquímicos em
tópicos.
SPACE
A
primeira coisa que se deve dizer sobre space é que "NÃO É ERRADO NÃO
ENTRAR EM SPACE". Vejo inúmeras pessoas se cobrando por nunca terem
entrado em space, como se a play ou sessão não tivesse sido prazerosa o
suficiente , ou como se entrar em space fosse muito mais uma questão de status
social (eu sou um BDSMer melhor que os outros). Como no caso de uso de
quaisquer substâncias que alterem a consciência e percepção, como álcool,
drogas ou medicamentos, existem pessoas mais suscetíveis e outras mais
resistentes, mas o fato de ser mais resistente não significa que você não
esteja sofrendo esses efeitos.
E o que
significa, de forma prática, o space? Esse estado nada mais é do que a
liberação de endorfina e aumento dos níveis de adrenalina no sangue. A
endorfina é um neuro-hormônio liberado em reposta à dor (endo=dentro,
orfina=morfina) e ao controle da depressão, stress e ansiedade. Então, da mesma
forma que você libera endorfina quando faz atividade física, quando quebra um
braço ou rala os joelhos, esse hormônio é liberado quando você sofre um
spanking, por exemplo. Quando nosso corpo libera endorfinas, ele libera outros
hormônios que são responsáveis pelo aumento nos níveis de adrenalina (sugiro
ler o outro post aqui, chamado as bases bioquímicas do amor). A
adrenalina é o hormônio do medo, da fuga, que relaxa alguns músculos e contrai
outros, aumenta a pressão arterial e prepara o corpo pra reações extremas.
Quando
toda essa tempestade neuro-hormonal é disparada em resposta à dor, o que
acontece é que se iniciam processos que vão culminar na expansão ou perda de
consciência, transe e a sensação de estar fora do corpo. Algumas pessoas
parecem estar embriagadas, drogadas ou ainda, têm "ataques de riso".
Essas diferenças refletem as particularidades de como cada um reage à esses
estímulos. Outras pessoas podem reagir ao space com comportamentos eufóricos,
alegres, porém, conscientes. Porém, uma fase comum à todas as pessoas que
entram em space é o "spin", descrito por alguns terapeutas sexuais
como o estágio em que fazemos qualquer coisa, literalmente, pra manter a
sensação de prazer e quebrar a inibição durante o sexo. O spin também pode ser
definido como a sensação de orgasmo permanente, da qual fazemos de tudo pra não
sair...
Submissos
não masoquistas tendem a entrar em um outro tipo de space, relacionado com a
necessidade de servir. É o momento que a submissão tá no auge, que o prazer é
todo direcionado para o Top, e que a noção de alegria se resume ao serviço, à
entrega, à condição de estar sendo moldado pelo prazer de quem comanda a
cena.
Independente
da condição, se bottom ou Top, se submisso ou masoquista, o ápice do space é o
momento em que tudo desaparece e ali permanecem apenas Top e bottom. Os
sentidos são brutalmente apurados ou apenas desvanecem, gerando uma sensação de
torpor. É por essa razão que o space é uma faca de dois gumes: apesar da imensa
onda de prazer, o pensamento racional, a tomada de decisões e, especialmente, o
reconhecimento de limites ficam prejudicados. É nesse momento que o Top
deve diminuir o ritmo e gradualmente parar a cena, trazer o bottom devagarinho
de volta a realidade e iniciar o aftercare.
Mas como
o Top reconhece o space? A linguagem corporal geralmente dá a dica de que o
space chegou. Produção excessiva de saliva ou boca seca, tremores, sudorese
intensa ou queda brusca de temperatura, emissão de sons guturais ou dificuldade
de articular as palavras. Algumas pessoas podem entrar em estados tão profundos
de inconsciência que ficam incapazes de responder à perguntas simples, como
"qual seu nome?" ou " está claro ou escuro?". A palavra de
ordem nesse momento é "PARE", porque essa pessoa não tem mais limites
físicos e é incapaz de pronunciar a palavra de segurança, por exemplo.
Você deve
estar se perguntando como é que isso se aplica ao Top. Explico: o Top também
sente dor, também faz esforço. Imagina bater em alguém por horas, a tensão da
cena que faz com que os músculos se contraiam, a tempestade de adrenalina (não
se esqueça que seu corpo não entende o ato de bater e apanhar como
"naturais", apenas como ação e reação à um perigo iminente). Dessa forma,
embora seja muito menos comum, Tops também podem entrar em space.
Na verdade, o estereótipo do Top como alguém completamente forte e inatingível é bastante tóxico dentro do BDSM. Segue o mesmo princípio de "homem não chora". Tops são humanos, sentem cansaço, fadiga, tristeza e têm dias ruins. Não é porque estamos cuidado de outra pessoa que não precisamos de cuidados também. Nesses casos, é bom que tenhamos alguém com quem conversar, ou que utilizemos dos mesmos artifícios do aftercare com o bottom: Um chocolate (retarda a queda de endorfina), um livro, filmes, um bom banho... Coisas que dão prazer.
Reforço,
com esses últimos parágrafos, a importância de nos relacionarmos com pessoas
não apenas experientes, pois toda experiência parte da inexperiência, mas com
pessoas que se preocupam em conhecer seu corpo, em primeiro lugar, antes de
praticar BDSM. Além disso, e sobretudo, com a responsabilidade que é conduzir e
ser conduzido, de forma a saber em que momento deve-se abrir mão do prazer em
nome da segurança.
Molécula de miosina carregando a endorfina para a porção parietal do
cérebro que gera felicidade
Subtópico: A importância do AfterCare
Basicamente,
como o próprio nome diz, aftercare são os cuidados "após". Tudo o que
ocorre após uma sessão ou uma play aberta, que traga alguém de volta a
realidade. O aftercare restabelece os papéis normais de Tops e bottoms após a
prática, e, ao contrário do que muita gente acha, e por essa razão, recusa-se a
praticar o aftercare, esse não é momento de botar no colo, dormir de conchinha
e dar beijinho (a menos que seja prazeroso pra ambos, é claro!). Após o
spanking, por exemplo, ou práticas mais invasivas como blood play, o after é
composto primariamente de primeiros socorros "físicos". É o momento
de realizar a limpeza dos cortes e lesões, oferecer pomadas ou analgésicos
(verificar com o bottom antes da play quais os medicamentos ele pode usar),
oferecer água e um doce, de preferência chocolate, caso o bottom não seja
diabético (nesse caso, chocolate dietético para manter os níveis de endorfina
se normalizando lentamente), contato físico, de preferência em alguma área que
não tenha sido afetada pela cena, que pode ser um abraço ou simplesmente,
sentar-se ao lado do bottom para observar suas reações e demonstrar seu
interesse em que tudo corra bem com ele dali pra frente. Eu costumo dizer que
muita coisa no BDSM é teoria, mas o aftercare é OBRIGATÓRIO. É o desfecho da prática, é o reforço dos laços
afetivos e de confiança. E mesmo com praticantes ocasionais, com os quais não
se tem uma relação, isso não pode ser negligenciado.
DROP
De forma
bem objetiva, o drop é um estado de exaustão neuroquímica que se segue após a
prática. Como eu disse lá no tópico do space, quando praticamos BDSM, sofremos
uma tempestade de endorfinas e adrenalina, e é natural que terminada a prática,
o corpo vá retornando aos níveis normais dessas substâncias. No entanto, devido
à intensidade da cena, é comum a sensação angustiante provocada pela falta
desses estímulos, que pode ser leve, moderada e acentuada, dependendo da
pessoa, e pode culminar em estados depressivos provocados pelos baixos níveis
de endorfina e dopamina, por exemplo. Existem alguns sinais clássicos de drop,
que serão descritos abaixo e, por experiência própria, uma das formas de
minimizar essa sensação é desligar-se lentamente da cena. Ao fim da prática, em
vez de simplesmente desamarrar uma pessoa que está presa, ou simplesmente parar
de bater, é importante que seja diminuído gradativamente o ritmo do spanking, ou
no caso de bondage por exemplo, que sejam tiradas as vendas, depois a
mordaça, depois as algemas ou cordas, e em meio a toda essas ações, que haja
conversa, elogios, que o Top agradeça ao bottom por ele ter confiado, por ter
proporcionado um bom jogo, etc. Atitudes como essas ajudam a minimizar a
sensação de abandono que pode acompanhar o drop.
NOTA PARA
OS TOPS: JAMAIS deixem de agradecer aos bottoms, nem de demonstrar como eles
foram importantes e proporcionaram prazer!!!!
Como identificar o drop?
O drop
pode incluir sinais físicos prolongados e emocionais, e de maneira geral, esses
são os mais comuns:
SINAIS FÍSICOS
- Boca
seca, sede excessiva, como se estivesse de ressaca;
- Dores
pelo corpo (provocadas não apenas pelo impacto ou pela contenção, mas pela
contração muscular em momentos de tensão);
- Câimbras;
- Cansaço
extremo, mais do que o normal;
- Tonturas
- Sudorese
intensa, que pode ser suor frio ou não;
- Tremores;
- Sensação
de "choque elétrico"
SINAIS EMOCIONAIS
- Irritabilidade;
- Tristeza;
- Dificuldade
de concentração;
- Dificuldade
para dormir ou excesso de sono;
- Dificuldade
para comer ou excesso de apetite;
- Ansiedade
persistente e sem controle;]
- Sensação
de abandono e solidão;
- Culpa;
- Medo;
- Negação;
- Dependência
emocional
OBS: O
drop pode se manifestar de 24 a 72h após a prática, portanto, é necessário o
acompanhamento nesse período. É bom desconfiar também de estados de euforia
constante, pois podem ser indicativos de mecanismos de negação.
Rolou o drop. E agora, como lidar com isso?
Os sintomas
físicos do drop são infinitamente mais simples de serem sanados, desde que
feito um aftercare correto. É importante acompanhar a evolução das dores, e,
caso os medicamentos utilizados não estejam sendo suficientes, é necessário
procurar ajuda médica, para verificar possíveis lesões não intencionais que não
tenham sido identificadas. O cuidado com as marcas também é necessário, visto
que a permanência delas pode induzir o bottom ao estado de culpa ou vergonha,
porém, por outro lado, existem pessoas que gostam de observar suas marcas e
isso traz a elas conforto e prazer. Quanto aos sintomas emocionais, obviamente,
tudo que acontece dentro das nossas cabecinhas toma proporções muitas vezes
desastrosas, que podem nos levar a um estado de depressão e vazio incontroláveis.
Muitas vezes a sensação mais comum é a do abandono, provocada pela falta de
estímulo e intensidade da prática ocorrida, o que é puramente fisiológico mas
toma proporções irracionais. Nesse momento, o diálogo é fundamental, mas se
fazer presente de alguma forma, é essencial. No caso de impossibilidade de
encontros presenciais, é necessário que o Top telefone, envie mensagens, e
nessas demonstre a todo tempo que o bottom foi incrível, que seja elevada sua
autoestima para evitar sentimentos de culpa e de incapacidade. A carência e
dependência nesse momento são muito, muito usuais, então paciência e carinho,
são os antídotos. Não seja ríspido e não se ofenda com uma pessoa que
"acha" que você está distante, porque pra ela isso não é simplesmente
"achar". Ela tem certeza disso, mesmo que não seja verdade! Como eu
digo, BDSM não é pra quem quer, e sim, pra quem aguenta. Se você acha que não
tem condições e/ou disponibilidade para dar esse suporte emocional, não
pratique!
Conselho aos Tops: A cena vai muito mais além daquilo que você mostra
numa festa ou em fotos. O que tá por trás e se segue após tudo isso é o que faz
de você uma pessoa responsável.
É
importante lembrar que o drop ocorre muito mais frequentemente em
relacionamentos estabelecidos, seja um casal ou um play partner com quem você
tenha laços. Isso acontece porque em plays casuais, os elementos afetividade e
intimidade, que acontecem nos relacionamentos já estabelecidos, não têm o mesmo
peso, pois são justamente essa intimidade e confiança que podem ser
questionadas durante o drop. Não importa o quanto você confie em alguém, que
isso não impede que sentimentos como descrença (é possível que eu seja tão sujo
e pervertido a ponto de gostar disso?") venham à tona, e isso culmine no
drop. Além disso, limites estabelecidos em relacionamentos de
"compromisso", podem ser frequentemente testados e expandidos, o que
não ocorre (ou não deveria ocorrer) numa play casual, que não tem tempo nem
histórico emocional suficiente para criar um ambiente pra realização de
"edge plays".
Quando o
drop se prolonga por longos períodos, e apesar de todos os cuidados pra que
isso não ocorra terem sido tomados, quando a sensação de tristeza e depressão
vêm acompanhadas até de impulsos suicidas motivados pela sensação de incapacidade,
de ineficiência e de insatisfação, pode estar configurada uma síndrome
psicológica desencadeada pelo stress contínuo, o burnout.
BURNOUT
Essa
nomenclatura não é algo inerente ao BDSM, mas à uma síndrome psicológica que se
caracteriza pela apatia provocada pelo acúmulo de stress, atualmente muito
ligada ao trabalho. De acordo com Freudenberger,
psicólogo clínico que na década de 70 deu nome à síndrome, um indivíduo
com burnout se comporta como estando frustrado ou com fadiga
desencadeada pelo investimento em determinada causa, modo de vida ou
relacionamento que não correspondeu às expectativas. As pessoas nessa condição,
frequentemente deixam de investir nas relações afetivas, em virtude da exaustão
causada pelo stress decorrente de se sentirem o tempo todo sob a pressão de
agradar e da consequente sensação de que não são bons o suficiente, de serem os
melhores partners, de estarem o tempo todo impecáveis para fotos e práticas
abertas, entre outros fatores. O burnout é, ainda, mais comum em
relacionamentos longos que misturam a vida baunilha, e em relações TPE, por
exemplo.
Esse estado psicológico se caracteriza pela falta de desejo de se
submeter ou de dominar, e geralmente a letargia e apatia são gritantes. O
esgotamento geralmente ocorre quando os recursos de criatividade foram
extenuados, em que não existe mais excitação com o fetiche nem interesse em
demonstrar e/ou falar disso com alguém. Nessa situação, deixa de investir nas
relações afetivas e, aparentemente, torna-se incapaz de se envolver
emocionalmente com o mesmo. A exaustão emocional dos que sofrem desse quadro é
diretamente ligada a um quadro de intensa tensão emocional que leva ao
esgotamento e apatia, e que pode se agravar até a despersonalização e
desenvolvimento de sentimentos e atitudes negativas, como suicídio. Obviamente
essa síndrome é um conjunto de fatores, e as práticas BDSM podem não ser o
determinante, mas certamente são agravantes. De qualquer forma, por se tratar
de um quadro permanente por longos períodos, requer assistência psicológica
e/ou psiquiátrica, em virtude dos graves desdobramentos desse quadro. No
entanto, reforço que, assim como durante todo o processo que envolve o BDSM,
desde uma play avulsa até um relacionamento longo de dinâmica 24/7, a
consensualidade, a responsabilidade física e, sobretudo, emocional, devem ser
os pilares sobre os quais sejam construídas todas essas relações.
Até breve
Eu amei sub space, sub drop,lembrei de min numa época ,meus sentimentos eram um vulcão de sensacoes,espero q muitos Top tenham visto o texto tb,parabéns eu gostei muito.
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